terça-feira, 24 de setembro de 2019

Crônica do trem II

Crônica do trem II

Putz!!  

Estou no trem, a garota ao meu lado tem um shopping inteirinho de maquiagem dentro de uma bolsa. Durante a  longa viagem, abre a tralha toda e resolve se embelezar. Abre um espelho e manda ver!! A coisa nunca acaba e desconfio que vai durar até a próxima semana ou até eu perder a paciência e der uma lambida nos cremes dela... o homem do lado, põe-se a dormir. Se não bastasse, ainda ronca. O que eu fiz?! Que me lembro, nunca preguei chiclete ou catarro no altar...

Ela já passou 43 cremes claros e 14 de cores mais carregadas. Dentre estes, 28 são mais líquidos e 11 são mais secos...
Para completar, o dorminhoco se vai, senta-se uma senhora no mesmo lugar, ou seja, ao meu lado. Imediatamente, ataca de unhas e dentes (se é que tem algum) um pacote de bolacha de sabor morango. O cheiro invade o vagão inteiro. Não satisfeita, saca de um segunda bolsa que está dentro de uma terceira, uma banana e descasca a bicha e: “nheck! Nhech!! Saem-lhe algumas lágrimas dos olhos, não sei se de prazer ou de desgosto...

Assim, chegamos a Shinanomachi. O trem lota terrivelmente. A gorda dos cremes percebe que chegou na estação onde deveria descer com calma, só que o ato de maquiar não a permitiu notar que a chegada se aproximava. De repente, salta juntando as 12 bolsas, todas cheias de maquiagem, garrafas de chá, sanduíches e suponho que mais alguma coisa (talvez algum pedaço de açafrão) e avança na direção da porta, mas o movimento é semelhante ao de uma anta fugindo de uma onça. Ao sair toda esbaforida, escapa-lhe do pé esquerdo o tamanco vermelho Luiz XVIII que ficou preso à porta que se fechou logo atrás dela. Pronto! Está armada toda a confusão porque o trem avança, mas o tal Luís XVIII vermelho vai sofrendo duras escoriações até que o maquinista percebe e dá uma freada que provoca um solavanco tremendo fazendo a senhora ao meu lado engolir inteira a segunda banana! A turma toda é empurrada para a frente causando o maior reboliço. Dispara-se o alarme e o trem para. Vêm os técnicos. Depois de longos 20 minutos, encontram o pobre Luís XVIII quase vermelho e já sem utilidade... 
Pronto! A gorda, apesar de ensebada, vai ter de andar com um pé calçado e outro sofrendo.

Segue a viagem. Entre os novos passageiros, entrou um doido que só foi percebido quando gritou a toda a altura: "Pega!!! Pega!!! Houve um tumulto como nunca tinha visto! Alguns passageiros se agacharam pensando tratar-se de tiros. Um senhor que dormia sentado em um banco à minha frente, com a boca aberta, levou um susto de parar o coração!! Com o solavanco, deixou saltar a dentadura que caiu entre os passageiros, agora atordoados. Ainda sem entender o que se passava, o senhor, agora com a boca murcha, tentou agarrar a dita dentadura bem no meio da confusão. Quando pensava em abafar com as duas mãos a desejada dentição, eis que uma senhora mudou o pé do lugar e viu logo duas mãos abarcarem com toda a força o seu pisante! Neste momento, pensou que o "pega!" se referia ao seu pé e deu um agoniado grito: "sooooolta!!" 

A confusão que jé andava a tantas, ferveu! Alguns homens ameaçaram a bater no doido pensando que se tratava de alguma trama entre o doido e o velho. Entre as bofetadas e bolsadas, um outro homem com uma sacola de goiabas, esqueceu-se da fragilidade do seu embrulho e zás na cacunda do doido. As goiabas saltaram como balas perdidas em direção aos quinze lados do vagão. Alguns passageiros ficaram literalmente com cara de goiaba. 

O senhor da dentadura e a mulher do pé enfrentavam provavelmente, uma das maiores pantominas de suas vidas. O problema é que ao se levantar, o velho deu-se com a forquilha da mulher por baixo da saia. A coisa ficou feia porque a mulher batia-lhe com a bolsa e ao mesmo tempo tentava desvencilhar-se do velho. Ele, por sua vez, com as duas mãos tentava escapar sem saber onde estava porque não podia ver nada em meio à escuridão que se meteu. A cena, ora parecia uma tourada com a mulher montada no cangote do velho, ora parecia uma briga de cachorros ensacados. Alguém aciona o botão de emergência do trem. Neste caso, a parada é sempre muito brusca, pois pode tratar-se de algum atentado ou coisa semelhante. O trem para como uma matada de bola no pé de um habilidoso futebolista. Minha Nossa Senhora Desatadora dos Nós!! Nunca tinha visto uma confusão que já era tamanha, virar um monstro! Na parada do trem, os passageiros foram jogados para frente como se fossem batatas. 

Parado o trem, o velho tinha desmaiado, a mulher toda suada, enfim, tentava se ajeitar. Um outro homem foi logo socorrido porque a gravata enganchara num parafuso e estava quase lhe enforcando. A língua já estava arroxeada. Um rapazinho do cabelo de gel, agora parecia um Galo da Serra com o topete do tamanho do mundo. Um outro homem, teve o cinto arrebentado e agora segurava as calças com uma das mãos. Os botões das blusa de uma outra mulher, tinham voado sabe lá para onde!! O suspensório de um outro estavam alojados na ponta de um guarda chuva. O doido, coitado, estava caído no corredor do trem todo "assafronhado", de bunda para cima, mas ainda respirando. Enfim, abrem-se as portas do trem e os passageiros saem aos poucos. As pessoas dos outros vagões pensaram tratar-se de um atentado. 

Enfim, vêm os socorristas aos gritos de "abram caminho!", acionam-se a ambulância, para-médicos, engenheiros da companhia do trem, policiais, graxeiros, jornalistas, radialistas, enfermeiras, foguistas, acendedores de lampião, pastores, padres, vendedores de funerárias etc. Todos vão correndo e à medida em que avançavam ouvem o que os passageiros estavam relatando. Um homem falava de arruaceiros. Uma mulher jurava tratar-se de uma briga. Um rapaz afirmava ser um grupo do UFC. Uma outra mulher jurava ter visto o diabo vestido de zorba verde entrando por baixo da saia de uma passageira o que não deixou de ser atestado por uma terceira senhora que ainda acrescentou que o diabo tinha perdido até os dentes! Mais à frente, já quase no vagão do episódio, um outro falava de um bêbado. Enfim, quando chegaram todos os socorristas, com seus extintores, martelos, serras elétricas, escadas, tubos de oxigênio, fita métrica, água oxigenada, mertiolate, materiais de primeiros socorros, puseram-se a entender o que tinha ocorrido. Mandaram todos saírem do trem e os policiais entraram pé-ante-pé, pois podia ser algum terrorista que se escondia deitado em algum lugar. 

Enquanto os policiais cuidavam de achar o terrorista, os para-médicos, enfermeiros, técnicos, engenheiros esperavam do lado de fora a liberação da polícia para adentrar no vagão. Feito isso, uma equipe foi logo socorrer o doido, enquanto outra tentava avivar o velho que ainda estava desmaiado. Uma terceira equipe perguntava se tinha mais alguém ferido ou coisa assim. Foram identificadas pequenas escoriações e aranhões. Mais severamente, uma mulher estava com as orelhas sangrando porque os brincos lhe tinham sido arrancados. Um homem tinha o pé direito virado para trás. Sim, ao contrário. Um outro tinha o olho roxo, e uma senhora só tinha 9 unhas nos dedos da mão porque a outra lhe fora arrancada! 

Enfim, feitos os primeiros socorros, o velho ainda custava a voltar a si. Deram-lhe uma água, fizeram-lhe massagem, puseram-lhe oxigênio e tal. Trouxeram-no para fora do trem de modo que todos podiam acompanhar o tratamento. Aos poucos, o velho, foi se recobrando da tragédia. Os médicos perguntavam-lhe coisas para saber se já estava consciente. Finalmente, depois de alguns minutos, o velho, já sentado, pois se a olhar à  volta tentando entender que tragédia tinha sido aquela. Então, um médico pergunta-lhe o que tinha acontecido. Não sei, meu senhor. Ouvi um grito tremendo e assustei-me. Logo em seguida, acho que entrei em algum túnel porque não conseguia ver nada, só ouvia pessoas gritando e alguém me batendo. Lembro-me também que o tal túnel fedia a quiabo!  De resto, não me lembro de mais nada.

Enfim, todos passageiros agasalhados a viagem segue e espero que a próxima viagem seja marcada por um caso de amor!



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